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Mostrando postagens de setembro, 2023

De borracha

  Ando com sandálias de borracha pelo piso do banheiro. Rastejo com um balde, água, desinfetante e escova, limpando o cômodo como nunca havia sido tão cômodo. Eu, um senhor de sessenta anos com minha mãe a ouvir orações e preces na televisão da sala, nunca tinha feito essa tarefa aparentemente difícil, que será repetida por vezes nesta quarentena. O professor aprende mais do que ensina. Esse tal Amor deve ser a ferramenta nova no balde que com certeza vai desinfetando o piso conhecido e desinfetando ainda mais o espírito, esse ilustre desconhecido. Minha mãe leva consigo uma doença que devido à idade não pode ser tratada, porém, para ela tudo é questão de fé e a dela tem o tamanho da eternidade. Pronuncia alto as respostas às orações dos sacerdotes que trafegam pelas imagens televisivas, entre um alerta sobre a covid-19 e as publicidades do canal evangelizador. Eu e ela, ela e eu. Há pouco eu lavava as louças e as panelas do almoço que também de forma original, aprendi a fazer dand...

QuarentAnna - Na pandemia

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  Hoje nessa pra lá de sessentena, está fazendo frio. Um vento entra por todas as três janelas e pelas duas portas do mini apê. Não sei se vem do norte, do leste, do oeste, ou do sul. Não tenho mais a referência do galinho na ponta da torre do palacete. Talvez até, esse frio insolente - in do dentro e solente do sol - de tão medroso e tão dentro do astro não é capaz de nos resfriar o suficiente, estejamos nós no sudoeste, nordeste, noroeste, ou neste sudeste mesmo. O costume e o mais acostumado dele ainda, me impede de fechar as aberturas por onde vêm os ares positivos dos antidepressores, antifungos, antiácaros e antivírus. Virá, virará pó. Esse eu vi e vejo no escorregar da vassoura de cerdas azuis que o empurra até o metal da pazinha. O pó. Pazinha que o levará para o saquinho de lixo de quinze litros devidamente posto no suporte plástico. Suporte verde e branco. Pazinha. Ê pazinha, pazinha mesmo. Uma paz que está mais próxima de ser decepada pela lâmina cega da pá intimidadora ...

Utensílios - Na pandemia

  Acabo andando pelos espaços pequeninos do apartamento e refletindo se eu sou apenas maníaco por organização e elétrico de nascimento, ou sou também  acometido por algum outro mal. Não, sou apenas organizado por uma questão de sobrevivência. Sei que existe a obsessão, o TOC, a compulsão, mas acho que por tudo isso ainda não fui infectado. O que acontece que estou encantado por determinados objetos de uso culinário. Na ausência de um pirex mais apropriado para dois seres humanos confinados, pedi para que meu filho comprasse e mandasse entregar aqui no prediozinho. Um que fosse quadrado, afinal eu adoro telas quadradas, papéis quadrados, muitos quadrados que nada têm de enquadrados. O pirex veio e já está em uso, assando massas de tortas de liquidificador. Ah, mas o pirex veio depois. Antes de tudo, o abre e fecha da torneira que, antes da pandemia, meu irmão comprou de presente e mandou instalar. Abre e fecha é uma hastezinha que eu mexo e ela vai pra parede e vem pra pia, vem...

Isolamento - Na pandemia

  O prefixo ISO significa igual, ou seja, isométrico, medidas iguais de um lado e do outro. Isotérmico, mesma temperatura. Deveria eu pensar, portanto, que Isolamento seria: Igual lamento? Isolamento vem do verbo isolar, no seu infinitivo, de tal forma que pensaria eu novamente ser isolar: O mesmo lar? Lares iguais? E por aí vai o pensamento de quem se vê isolado. Isolado da amada, isolado da escola que ele gosta muito. Isolado de um lado diferente, oposto, não isolado do mesmo lado. Pelo contrário, em lados brutalmente diferentes. Ah, mas esse isolamento também pode acontecer a partir dos lamentos diferenciados e pode nos tornar assim, muito menos lamentosos. Lámen é macarrão num território distante, porém de onde ele veio ele trouxe a sabedoria oriental: Arigatô. Lamento. Lá a mente tem o frescor de menta. A leveza do aroma que ameniza o tormento. A tormenta que nos assola nestes momentos pandêmicos, deve ter a sola furada de um sapato velho, já que há mais de cem anos a peste de...

Lixo - Na pandemia

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  Nem sei se é dia certo, mas de repente fui dando um laço forte no plástico preto de lixo, moldado pela lixeira de tamanho médio, verde e branca. A lixeira molda na dialética das coisas que se movimentam dentro do plástico e eu vou me moldando humano na coreografia feita por mim, na cozinha. Laço dado, vou logo desenrolando o sacão azul, limpíssimo, para colocar o saco menor, dentro e remoldado. Sim, remoldado, afinal é necessário o movimento de ida até os banheiros para descartar os dois saquinhos de supermercado dispostos cada um na sua respectiva lixeirinha, cada uma com sua tampa sem borda. O suficiente para tapar os saquinhos. O remolde se deve a colocação socada de um saco justaposto a outro e todos dentro do azulão. Já consta a diferença entre esses quatro sacos dada a natureza e as cores dos mesmos, mas não são essas apenas as diferenças. Existe a marca, aquela que marca mesmo, a do mercado em questão. A da mercearia, localizada estrategicamente pertíssimo de casa. Esse pe...

Dupla face - Na pandemia

  Hoje troquei a buchinha da pia pela segunda vez em sessenta dias. Aquela, dupla face. Um lado mais macio, o outro áspero, sendo esse o meu preferido. O áspero, o verde. Aquele que raspa a sujeira forte, o que, no atrito, vai empurrando os resíduos mais sólidos pra pia prateada de aço inoxidável. Os sólidos só são detidos pelo dispositivo colocado no ralinho. Aí aparecem vários verbetes fantásticos: Inoxidável, aço, ralinho, resíduos, prateado. No ato da limpeza, o lado mais macio da bucha vai sendo esquecido e o áspero cada vez mais ralo, menos verde, menos raspante.  Uma buchinha inofensiva que acabou por deixar praticamente intacta a maciez, por mais paradoxal que possa ser na realidade humana. Vejo aí uma relação íntima com a minha interioridade. Desejo com o máximo da minha força raspante de sujeiras, ser macio, suave, porém as reações do dia a dia, do cotidiano, vão me ganhando com sua aspereza, tornando-a minha. Minha esperança é que, como na buchinha, o meu áspero vá ...

O músculo inexistente

  Acabo de ouvir como pano de fundo da Alexa, a canção do Jorge do Bem que diz que os alquimistas estão chegando. Um mestre dos mestres. Um alquimista, maestro dessa galáxia me propôs um exercício de imaginação inusitado. Veja que acabo de escrever uma bobagem sem tamanho, afinal um alquimista maestro só poderia me propor algo inusitado. O tamanho da proposta vem com a grandiosidade do filósofo: Pensar no nosso corpo já meio desgastado como só pele e ossos. Um corpo raio X foi a primeira coisa que me veio à cabeça. Ver através do maior órgão do corpo humano, as veias, o sangue circulando pelos canudinhos azuis  e os ossos branquinhos e suas articulações. Isso. Articulamos nossas ideias usando gelatinas mais espessas, filosóficas até, mas muito práticas a ponto de conseguirmos alcançar algum sentido, mesmo que seja através de cada interpretação. Pensemos em gelatina espessa. Sendo essa gelatina grossa a cartilagem que promove a possibilidade de movimentação do nosso esqueleto, ...

Aposentada

  Ontem aposentei uma faca para cortar pão. Não compro mais caixas de hambúrgueres e portanto, não comprarei mais os pães redondos e fantásticos feitos especialmente para abraçar os tais círculos de carne bovina. Uma questão mais lógica do que emocional. Esse detalhe me levou a pensar na beleza da faca e seu corte. Cabo de plástico branco com a lâmina serrilhada sempre brilhante. Bonita a faca. Agora lá está ela descansando na primeira gaveta do móvel da cozinha, aproximando-se do acendedor novo e automático que comprei para o meu fogão velho e nada autômato. Junto a este estão também a peneirinha de chá com cabo vermelho, a faca bacana de cortar tomates e o abridor de tampas de compotas que só conheci depois dos sessenta anos. Um acessório totalmente feito de plástico azul, duro. Depois dos sessenta nada mais de ficar com um pano de prato tentado a todo custo e força, girar a tampa do vidro. Um toque com o abridor azul no centro e a tampa gira e abre rapidinho. Essa história de co...

Sandálias

  Enquanto eu subia a escada da escola pública, um aluno mestre um dia me disse: Onde você vai com essas sandálias de Jerusalém? As minhas sandálias poderiam ser aquelas rasteirinhas feitas de um couro necessitado de ser molhado e exposto ao sol, mas não. Foi comprada numa loja que prometia conforto especial para os pés, coisa fina. Hoje está guardada num pequeno armário que suporta a esperta televisão de tela plana. Com todo esse calor que está acontecendo na quase primavera, resolvi tirá-las do esquecimento, vesti-las e me dirigir ao estacionamento do prédio. Pús-me dentro do carro, o câmbio no ponto morto e lá fui eu com o pé na embreagem. Adoro essa palavra, embreagem. Embrenhei-me na tarefa de acertar o comportamento dos pés, mas senti que não era a mesma coisa. Com os meu costumeiros tênis colados aos pés o controle tem sido muito maior. Todos os dias. Enfim, as sandálias escorregavam dos pés e a sensação de desconforto ao dirigir era grande. A minha necessidade de dirig...

Graça

Desço do Cometa com a minha mochila nas costas e só de escrever essa frase já me entusiasmo com a imagem. Descer do Cometa. Para os que não conhecem, Cometa é a empresa de ônibus que nos traz de São Paulo para Sorocaba. Desço e já procuro no celular o Uber na quantidade imensa de aplicativos. Quase todo mundo sabe o que é Uber, mas o que muitos ainda não sabem é que o primeiro motorista que aceitou me levar para casa desistiu. Mal sabia ele o que viria a seguir. Ele deixou de fazer relações quase absurdas com as nossas palavras. Que bom que foi um Alisson Roger que aceitou fazer parte de uma história brincante e carnavalesca. Veio da marginal um carrinho quase sem pintura, mas de um colorido que já me anunciava o artista. Entro e já vejo a nuca desenhada coberta pelo boné preto e vermelho. Iniciamos a pintura na nossa tela de conversa. Versamos sobre os três discos de vinil que trago no colo, as memórias que causam no menino, lembranças da agulha, depois das fitas cassete e agora já es...