Utensílios - Na pandemia
Acabo andando pelos espaços pequeninos do apartamento e refletindo se eu sou apenas maníaco por organização e elétrico de nascimento, ou sou também acometido por algum outro mal.
Não, sou apenas organizado por uma questão de sobrevivência.Sei que existe a obsessão, o TOC, a compulsão, mas acho que por tudo isso ainda não fui infectado.
O que acontece que estou encantado por determinados objetos de uso culinário.
Na ausência de um pirex mais apropriado para dois seres humanos confinados, pedi para que meu filho comprasse e mandasse entregar aqui no prediozinho.
Um que fosse quadrado, afinal eu adoro telas quadradas, papéis quadrados, muitos quadrados que nada têm de enquadrados.
O pirex veio e já está em uso, assando massas de tortas de liquidificador.
Ah, mas o pirex veio depois.
Antes de tudo, o abre e fecha da torneira que, antes da pandemia, meu irmão comprou de presente e mandou instalar.
Abre e fecha é uma hastezinha que eu mexo e ela vai pra parede e vem pra pia, vem da pia e vai pra parede, abre e fecha.
Impressionante a eficiência.
Nunca mais aquela história do tal courinho que a gente tinha que trocar quando apertava demais para fechar a torneira.
Não é só nesse detalhe torneirístico que se apresenta meu encantamento.
Há o encanto pela escumadeira de metal com seus buracos verticais e simétricos.
Maravilha da natureza da criação dos objetos que cabem direitinho embaixo do ovo frito, da omelete, das panquecas, um luxo só.
A faca sem corte para passar a manteiga ou a margarina já é coisa usada pela minha mãe desde muito antes dessa pandemia.
Essa faca, quando a senhorinha teima, fica em cima do pote de margarina dentro da geladeira.
Agora vem a colher de pau sem um pedacinho da ponta.
Ideal para mexer o feijão na panela de tefal, já desgastada, mas que ainda está dando um caldo. Desgastadas, vocês entenderam, estão a colher de pau e a panela.
Quanta organização há no armário de mantimentos, embaixo à direita.
No de copos e taças, em cima à direita.
No dos pratos de vidro de todos os tamanhos, embaixo à esquerda.
E no de potes plásticos e suas tampas, em cima à esquerda.
A organização é secundária em relação aos vidrinhos de especiarias, os novos copos de requeijão já brilhando, a toalhinha que suporta as xícaras e os pires de todos os tamanhos.
O plugue do microondas que se encaixa e desencaixa do adaptador para três pinos, os varais de cordinhas esticados, os isopores de frios que ficam embaixo das embalagens grandes de sabão líquido, de desinfetante, de cândida, de amaciante, de lisoform e de alguns outros produtos de limpeza.
E ainda existem mais delicadezinhas tipo o cortador de batatas e legumes, bem simplezinho, de plástico, comprado na Avenida Santo Amaro, impressionantemente útil e ágil no corte das batatas doces e que tais.
Esse objeto está sendo uma mão na roda e a minha devoção a ele mais se deve ao fato de tê-lo achado meio escondido no fundo de uma das gavetas da pia.
Relegado e renegado a quase uma década ele tem se mostrado mágico no corte e na corte.
Agora vem a faca de corte fino, que eu passo e repasso no afiador de vez em quando e que corta até pensamento.
Uma ídola também.
Não posso esquecer da vassoura e do rodinho, outros dois queridos que foram comprados pelo meu filho, mas desta vez trazidos pessoalmente.
Mandei fora todos os outros trapos de limpeza e deixei apenas as duas toalhas surradas que foram dispensadas das suas tarefas usuais para agora roçarem os pisos do apezinho.
Só roçam os pisos lisos.
O da cozinha, frio, que é o mesmo da areazinha de serviço, o da sala e o do corredor do banheiro que são imitações de madeira.
Já o piso dos quartos são de carpete e esses são varridos com a linda vassoura de cerdas azuis sobre a qual eu já falei.
A pazinha, que relíquia.
Essa não quis dar de presente pra caçamba.
Fiquei com ela, elegante e velha, cabo longo de madeira de vassoura e pá de metal enferrujado.
Eficiente e justa.
Deixei pra acabar essa manifestação de apreço pelos utensílios domésticos falando sobre o móvel da máquina de costura.
Máquina de costura?
O móvel, a máquina não existe mais, mas o móvel, a madeira dele resiste coberta por uma das toalhas da mesa redonda da sala.
Sobre ele e a toalha residem as panelas diariamente usadas e constantemente lavadas e secas.
Todas de cabeça para baixo.
O liquidificador não é tão bom, mas eu uso pra caramba.
Carambolas, como estou me confortando com esses objetos encantados!
Tento organizar meus pensamentos desencontrados pelo isolamento.
Tento organizando.
Tento pra nós.
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