QuarentAnna - Na pandemia

 Hoje nessa pra lá de sessentena, está fazendo frio.

Um vento entra por todas as três janelas e pelas duas portas do mini apê.
Não sei se vem do norte, do leste, do oeste, ou do sul.
Não tenho mais a referência do galinho na ponta da torre do palacete.
Talvez até, esse frio insolente - in do dentro e solente do sol - de tão medroso e tão dentro do astro não é capaz de nos resfriar o suficiente, estejamos nós no sudoeste, nordeste, noroeste, ou neste sudeste mesmo.
O costume e o mais acostumado dele ainda, me impede de fechar as aberturas por onde vêm os ares positivos dos antidepressores, antifungos, antiácaros e antivírus.
Virá, virará pó.
Esse eu vi e vejo no escorregar da vassoura de cerdas azuis que o empurra até o metal da pazinha.
O pó.
Pazinha que o levará para o saquinho de lixo de quinze litros devidamente posto no suporte plástico.
Suporte verde e branco.
Pazinha.
Ê pazinha, pazinha mesmo.
Uma paz que está mais próxima de ser decepada pela lâmina cega da pá intimidadora do pó que agora descansa no saco.
Ai que saco, ficar escrevendo esse lixo sem nexo.
Sem nexo?
Com nexo circunflexo, grave, posto nessa grave situação.
Um lixo.
Porém, começo a escarafunchar nesse sacrário de restos e começo a achar coisas que me animam, me enchem de criação, colando pedaços de temores, rumores e tambores, ensaiando comunicações com todas as tribos vizinhas.
O poeta do andar de cima e a vizinha da frente são os escutadores que passeiam em horários separados com seus cãezinhos desmascarados.
O senhorzinho que é deixado a pé também tem seu animalzinho companheiro.
Digo que é deixado a pé porque a filha vem de carro e o deixa na esquina para andar embaixo do astro.
Noutro dia dona Anna ficou nervosa porque o senhor estava sentado na mureta com as duas mãos na cabeça.
A mureta é de cimento e circunda o terreno baldio.
Meu Deus! Que Maravilha escrever essa palavra: baldio.
Mas o senhorzinho apenas descansava.
Nada adiantou eu explicar para a minha mãe.
Ela ligou para a síndica, a subsíndica, o SOS, a guarda civil, o vereador.
Até que quando já alcançava o telefone dos bombeiros, o senhor bateu em retirada, como em todos os outros dias aliás, saltando para dentro do carro da filha.
Viu, dona Anna, não era nada.
Nada? Mas e o cãozinho?
Ah, esse deve ter tido uma crise de labirintite e ficou descansando, assim como os filés de pescada também descansam no limão e no sal, lá na geladeira, marinando para serem assados sobre a caminha de batatas.
Lá vou eu reaproximando-me dos afazeres culinários, dos talheres, das louças, das travessas, atravessando o samba das panelas.
Troquei a grande caneca laranja e preta pelo ex copo de requeijão, médio e transparente.
Leite esquentado no micro-ondas com café solúvel depositado no ex vidro de geleia.
Uma fatia de pão de forma chique é besuntada com requeijão colocado de fábrica em copo próprio.
Sobre o requeijão uma fatia de queijo mozarela.
E como num passe de mágica já foi, o tal café da manhã.
Tudo fruto da minha ansiedade incurável, ou incontrolável, que se impõe também nesse itinerário do matar a fome matinal.
Pronto.
É só esse o tal café da manhã sessentena, deliciando os primeiros minutos de um dia cheio.
Cheio de abrir a caixa de ferramentas para achar uma chave de fenda. Achei, consertei o plugue do ventiladorzão, mas o que achei mesmo foram restos de arame de três espessuras, que amarrados uma a uma acabaram por tornarem -se um objeto decorativo com a carinha de perfil de alguém desejoso de ser retratado, tratado de novo, agora como um ser metálico e decorativo.
Ah, decorativo sou eu nessa época de tantos afazeres, tantas certas incertezas como gostou o meu amor.
Decorativo não no sentido da peça composta por pedaços de arames velhos, mas no sentido de ter decorado em pouco tempo toda a coreografia cotidiana.
Um balé contemporâneo.
Um salto da dormideira, um rodopio até a pasta dental, um gesto anárquico até a cozinha, um passo, dois, quatro mil, acertando mesmo sem ter um relógio computadorizado para contar tais passos.
Falando em relógio já passa da hora e eu ainda tenho espaços no labirinto da cabeça para ficar matutando mesmo não sendo um matuto nato.
Nasce daí um pretexto.
Um pós texto.
Aquele que prepara uma oração para acompanhar a que vem da TV.
Várias orações para novas aventuras.
Ah, a Ventura.
Esse feminino do vento.
Que hoje é frio.
Venha.
As portas e janelas não têm o poder de fecharem-se sozinhas 

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