Dupla face - Na pandemia

 Hoje troquei a buchinha da pia pela segunda vez em sessenta dias.

Aquela, dupla face.
Um lado mais macio, o outro áspero, sendo esse o meu preferido.
O áspero, o verde.
Aquele que raspa a sujeira forte, o que, no atrito, vai empurrando os resíduos mais sólidos pra pia prateada de aço inoxidável.
Os sólidos só são detidos pelo dispositivo colocado no ralinho.
Aí aparecem vários verbetes fantásticos: Inoxidável, aço, ralinho, resíduos, prateado.
No ato da limpeza, o lado mais macio da bucha vai sendo esquecido e o áspero cada vez mais ralo, menos verde, menos raspante. 
Uma buchinha inofensiva que acabou por deixar praticamente intacta a maciez, por mais paradoxal que possa ser na realidade humana.
Vejo aí uma relação íntima com a minha interioridade.
Desejo com o máximo da minha força raspante de sujeiras, ser macio, suave, porém as reações do dia a dia, do cotidiano, vão me ganhando com sua aspereza, tornando-a minha.
Minha esperança é que, como na buchinha, o meu áspero vá ficando menos verde, vá ficando mais maduro, suave, porém sem ser apenas subserviente, ou retornar-se áspero e rude.
Suave sim, porém diferente da bucha no seu lado amarelo.
Desta feita vem-me um sorriso amarelo no rosto, cabendo nele um desejo de limpeza suave.
Diferentemente do utensílio que tenta reparar o brilho, ou a opacidade natural das coisas, eu quero que o meu lado suave não fique intacto, novinho, quase sem ação, mas pelo contrário, possa atritar sobre os problemas, esfregar-lhes as impurezas, desgastar-se mas sem perder a ternura.
A buchinha nova descansa no porta buchas, detergente e rodinhos.
Esse é outro objeto que tem a sua importância e muitas vezes é esquecido no bolor e nos grudes que vão ficando impregnados no seu plástico duro.
É urgente não esquecer que ele existe e precisa ser limpo, não de vez em quando, mas com o rigor da rotina.
A retina posta na rotina.
Ficar de olho naquilo e naqueles invisíveis.
Colocar neles os olhos da lembrança ativa.
Reativa.
Já que um raio de luz acaba de bater no correr da água da torneira da pia e me fez notar um breve arco-íris, tomara que eu seja capaz de notar. Colocar uma nota sol nos detalhes passíveis de sujeira, porém que podem e devem ser limpos, sempre a fim de recuperar neles a sua digna beleza anterior, perdida pela ação exaustiva dos humanos.
Aquela lindeza de quando chegaram na cozinha, vindos da prateleira do "tudo por um real".
Vale mais, muito mais a nossa capacidade de providenciarmos melhor situação para todos os utensílios da cozinha.
Jamais descartá-los como objetos inúteis.
Cá estou eu pensando em colar a buchinha antiga nessa que agora descarto.
Para comprovar que não jogo fora as esponjas, já existe uma outra que não faz parte da minha história atual, descansando na preteleirinha do banheiro da area de serviço.
Pense nela como aquela que jazia grudada num sabão de côco.
Essa é a que eu uso para a limpeza dos banheiros.
Volto à ideia de colar uma bucha na outra para que virem outra coisa, um novo objeto de estudo e prática. Mencionei área de serviço, mas pra mim, todo canto desse mini apê é uma área de serviço.
Como seria bom permanecer viçoso e parecido com a bucha nova.
Bucha que descansa.
Essa pelo menos agora repousa no quase mármore da pia fria 

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