Lixo - Na pandemia

 Nem sei se é dia certo, mas de repente fui dando um laço forte no plástico preto de lixo, moldado pela lixeira de tamanho médio, verde e branca.

A lixeira molda na dialética das coisas que se movimentam dentro do plástico e eu vou me moldando humano na coreografia feita por mim, na cozinha.
Laço dado, vou logo desenrolando o sacão azul, limpíssimo, para colocar o saco menor, dentro e remoldado.
Sim, remoldado, afinal é necessário o movimento de ida até os banheiros para descartar os dois saquinhos de supermercado dispostos cada um na sua respectiva lixeirinha, cada uma com sua tampa sem borda.
O suficiente para tapar os saquinhos.
O remolde se deve a colocação socada de um saco justaposto a outro e todos dentro do azulão.
Já consta a diferença entre esses quatro sacos dada a natureza e as cores dos mesmos, mas não são essas apenas as diferenças.
Existe a marca, aquela que marca mesmo, a do mercado em questão.
A da mercearia, localizada estrategicamente pertíssimo de casa.
Esse perto trata de respeitar o isolamento voluntário.
O que me faz voar de carro para lá e planar até o estacionamento do prediozinho numa volta épica.
Saquinhos todos numa mão só porque a outra carrega as chaves no chaveiro de mosquetão, o celular e a carteira preta.
Voltando sem ter saído dos saquinhos todos dentro do sacão, tudo vai de novo para uma das mãos.
Máscara no rosto e a chavinha do apezinho, essa sem mosquetão, levada apenas para apontar para o sinalzinho triangular e verde que eletronicamente abre os portões que dão pra rua.
Na calçada, ou melhor, no meio fio, as caçambas municipais.
De verdade o texto era para falar apenas da caçamba, mas tive que preambular até aqui porque se não fossem os quatro sacos eu não precisaria chegar e abrir a lixeirona.
Abri e já fui jogando o sacão azul enlaçado num movimento rápido e certeiro, no local mais vazio dentro do plasticão duro e cinza do envólucro lixístico.
Justamente chamei a caçamba de envólucro porque me ative a tampa.
Enorme e pesada.
E eu levo o sacão na mão esquerda, o que me facilita a abertura da dita porque uso o braço mais forte, o direito.
Peso a parte, levantar a tampa é ação  mágica.
Nesse tempo tão pequeno eu pude desvendar antroplogicamente o Mundo e suas humanidades.
Um zás.
O lugar onde alojou-se o sacão azul o fazia desaparecido e sem tanta importância.
A caixa de papelão da TV, a assistência, o copo de requeijão, as vacas de Minas, o vidro de azeite, os azulejos portugueses, a gaveta de madeira, as lembranças diversas, as pilhas AAA, as novelas de rádio, a embalagem de lanche do Mc, as miniaturas, a taça de vidro quebrada, a noite com luz de velas, a peneira rasgada, a doce torta de maçã, as meias coloridas, os doutores da alegria, as luvas de borracha, o piso frio da sacada.
Ah, a sacada da evocação dos sentidos.
O cheiro.
Adoro a palavra fedor naquilo que há nela de verbete, de palavra.
O sentido neste caso foi esclarecedor, afinal nesse zás de tempo tudo isso me veio à memória, ao coração, à alma.
Ao nariz.
Isso.
Não tive a ideia a partir dos olhos e nem dava tempo.
Foi o cheiro.
Salve o cheiro.
Com certeza você está pensando que esse cheiro singular não deveria estar no singular.
Deveria sim, afinal, foi a mistura de lembranças, a amálgama de memórias, foi o alvoroçar de fragrâncias que moldaram um perfume só.
Um laço, um enlace.
O cheiro humano.
O odor substancial de quem vive.
A fragrância de quem se anima.
O sopro que anuncia através do olfato que ainda há humanidade nos humanos 

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