Aposentada

 Ontem aposentei uma faca para cortar pão.

Não compro mais caixas de hambúrgueres e portanto, não comprarei mais os pães redondos e fantásticos feitos especialmente para abraçar os tais círculos de carne bovina.
Uma questão mais lógica do que emocional.
Esse detalhe me levou a pensar na beleza da faca e seu corte.
Cabo de plástico branco com a lâmina serrilhada sempre brilhante.
Bonita a faca.
Agora lá está ela descansando na primeira gaveta do móvel da cozinha, aproximando-se do acendedor novo e automático que comprei para o meu fogão velho e nada autômato.
Junto a este estão também a peneirinha de chá com cabo vermelho, a faca bacana de cortar tomates e o abridor de tampas de compotas que só conheci depois dos sessenta anos.
Um acessório totalmente feito de plástico azul, duro.
Depois dos sessenta nada mais de ficar com um pano de prato tentado a todo custo e força, girar a tampa do vidro.
Um toque com o abridor azul no centro e a tampa gira e abre rapidinho.
Essa história de conhecer coisas novas está cada vez mais presente na minha rotina de mais de sessenta.
A descoberta do quiabo como uma guloseima que tem gosto e é maravilhoso, veio dessa nova história do velho.
A delícia dos apetitosos camarões veio só depois dos quarenta.
E assim a matemática da descoberta das coisas tem me surpreendido sempre.
Uma função que tem o determinante na soma das alegres surpresas e na subtração de tudo que nos corta a alma como a faca de cabo branco cortava a massa cozida do pão e as sementes minúsculas de gergelim.
Não há gaveta para guardar a nossa fonte de criação, não há gaveta que aprisione a nossa atividade lúdica de tentar alcançar a alma dos outros.
Ao aposentar a minha faca bonita, pensei que pudesse lhe render alguma homenagem.
Pus na minha playlist: Fé cega, faca amolada.
Nada me amola mais do que perder alguma graça.
Hoje alcancei a graça que pedi tanto, tanto, tanto.
A graça de perceber que a aposentadoria do utensílio é apenas mais uma razão para a emoção querer sair da gaveta

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