Imagine

Não precisa imaginar um mundo sem guerras, sem miséria, ou sem desastres.
Pense apenas numa chuva fina, como essa que me acompanhou até aqui.
As gotas tocando o nylon preto do guarda-chuva dobrável.
Imagine apenas isso e não se estabilize, não estacione nele.
Cada gota é um toque delicado na pétala da flor da dama da noite.
Uma gota que agora espalha o perfume no chão que receberá os pisares de tantos.
Imagine o calçado sendo retirado no quarto e a pessoa sentindo o leve perfume na sola.
No dia seguinte ela seguirá o seu caminho.
Passos tocando a embalagem do chiclete jogado na calçada.
A boca com hálito fresco dizendo as palavras doces para alguém que acabou de conhecer.
O conhecimento desse alguém vai acrescentando um universo de palavras antes desconhecidas.
Cosmética que advém do cosmo, que na sua entranha contém o significado da beleza.
Um conjunto belo de louça inglesa enfeita o armário de fundo para uma cena do jardineiro.
Aqui se planta, aqui se colhe.
Verduras recém colhidas estão expostas na vitrine do mini mercado.
O mercado que está com o piso molhado pelo chuvisco.
Imagine o desenho animado que também tinha o batatinha e o guarda belo.
O guarda da letra do João Ricardo cantada pelo octogenário maravilhoso, chamado Ney.
Mato Grosso está no centro desse país continente e o contingente que habita aqui é enorme.
Grande como o Rio Grande, seja do Sul, ou do Norte.
Imagine.
O estado de coisas que passam pelo ritmo dos pingos miúdos.
Pequenas gotas que dizem muito nesse oceano de emoções.
Alguém emocionado publicou uma foto antiga que não poderia ser mais moderna.
A modernidade agita a mesmice de cada passo dado sem perspectiva.
Imagine.
Na perspectiva de cada um mora um modo que pertence só a essa pessoa.
Porque será que ela insiste em determinar o modo dos outros?
O não contentamento, a falta de humor, a primeira noção de guerra e ódio.
A menina me perguntou como essas pessoas conseguiam colocar a cabeça no travesseiro e dormir?
Eu respondi que ela estava perguntando porque era ela ue não conseguiria dormir.
A pessoa dorme porque seu sentimento é diferenciado, amarrado numa estrutura de poder.
Eu não posso com isso.
Imagino outra coisa.
Imagino os pingos da capa do compacto simples que o Ziraldo desenhou para a campanha contra a seca no Nordeste.
Água, molha essa terra, disse a canção.
O planeta água já antevia a caminhada do Arantes.
Estamos hidratados pelas garrafinhas que estamos sempre enchendo e esvaziando.
Esse mundo esvaziado de auto critica vai enchendo os bolsos.
O bolso das calças jeans normalmente vão se esgarçando com o tempo, por chaves, ou carteira.
As carteiras das salas de aula estão sendo furadas por pequenas tesouras que acertam o lugar exato do parafuso que prende o tampo.
Tampar o queijo na geladeira pretende protegê-lo do lacrimejar, mas parece que não tem jeito.
Ele lacrimeja.
O choro dos famintos quase já nem assustam apesar das fotos do Salgado.
As coisas vão passando ante nossos olhos e a nossa alma começa a se acostumar com o horror.
Terrir foi o nome dado aos filmes B de terror brasileiro na época de ouro do Zé do Caixão.
O sangue da garganta cortada era tinta vermelha da suvinil.
Num filme a lata desastrada apareceu no canto direito da tela.
A tela do cinema na qual aparecia uma marca, eu esperava alguns segundos pela segunda marca e o moço do projetor trocava o rolo.
Imagina o rolo.
Rolou uma conversa que alguém havia sido preso hoje.
Hoje é uma unidade de tempo.
O tempo permanece fechado e o guarda-chuva no armário.
O armário guarda outras coisas além da louça inglesa.
A chave do sucesso talvez abra outras coisas.
Talvez abra a mão e a faça tocar outras pessoas, além do território vago das redes.
Outro dia deitei numa rede amarela em Gonçalves.
Fiquei ouvindo dois rangeres da corda no metal e percebi que depois do primeiro impulso, a gente pode ficar deitado ali por horas e o movimento não cessa.
Nem o movimento, nem os rangeres.
Power Rangers.
A trupe colorida que anima o anime e as tardes de quem era criança.
A era da criança para mim não se acaba.
Eu me acabo de ficar imaginando.
Imagine.
Pense no que uma gota sua pode representar numa tempestade de ideias.
Uma gota de suor do seu exercício mental de imaginação.
Imagine.
Acho adorável o final daquela letra que fala sobre os óculos do John.
Lennon e o Baleiro.
Humberto e Lennon.
Sou Humberto, mas não esse.
Aberto a todas as gotas que são e serão postas no meu caminho que não tem apenas uma pedra, mas várias como propôs Drummond.
Como a chuva poderia molhar a pedra se ela não existisse?
Matisse experimentou uma pedra flutuante onde ergueu um Castelo.
Se gotas e pedras não existissem, sempre alguém as imaginaria

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