Vontades
Pensa numa vontade imensa de conversar com o motorista do ônibus circular.
A minha.Tudo porque eu, como idoso, fico em pé ao lado dele, esperando o meu desembarque.
Com certeza a vontade começou mesmo quando um jovem senhor mostrou a identidade para o motorista na hora de descer.
Veio imediatamente à minha cabeça a época na qual eu e Sandra tínhamos cinquenta e nove anos e fomos ao cinema.
Ainda não havia auto atendimento nos cinemas.
Sandra foi me orientando antes de chegar no guichê:
Compre duas meias entradas, afinal o jovem, ou a jovem que irá verificar as entradas, ao nos verem, vão logo imaginar:
Esses dois com certeza têm no mínimo setenta anos, nem vou pedir as identidades.
E não é que é verdade?
Quando eu atingi uma Certa idade, aos olhos dos mais jovens eu aparento ser o Eremita Santo Antão.
Rio, mas é verdade.
Claro que boa parte dos meus amigos alunos e ex alunos dirão:
Nossa Betu, você está igualzinho!
Claro, igualzinho às uvas passas que eu coloco no meu iogurte com granola.
Rio novamente e lhe digo que nunca conseguimos comprar meias entradas antes dos sessenta anos.
Motivo:
Eu sempre tive a certeza que na minha vez, no guichê, a moça atendente ia me perguntar:
Cadê o seu Documento?
No programa da Hebe, certa vez, um jornalista, na época com seus sessenta anos, olhou para os monitores de TV e disse:
Hebe, eu me vejo no monitor e não me sinto com a aparência que ele me apresenta.
Isso me marcou quando eu tinha os meus trinta e poucos anos.
Gosto dos trens do metrô que têm aquelas janelas grandes.
Fico sempre em pé na frente a elas, segurando na barra, olhando para o reflexo e me perguntando:
Quem é esse senhor aí na frente?
Enfim, amanhã pedirei ao doutor César o biblete que dirá que foi ele que me recomendou exercícios na academia.
A academia do clube exige esse documento.
E tenho fé no nome geral dos exercícios que está escrito no folheto:
Condicionamento físico.
Faz tempo, mas me lembrei de uma pracinha que existe ali em cima, perto do meu prédio.
Ela tem aqueles aparelhos coloridos para ginástica.
Gostei de um que a gente coloca os pés sobre um suporte e as mãos apoiadas num guidão.
As pernas vão para frente e para trás, assim como os braços, em sequência tranquilissima.
Assim eu imaginei.
Tanto gostei que fiquei meia hora com as pernas e os braços indo para frente e para trás.
Consegui chegar em casa tranquilo, com o corpo quente.
Tomei um banho e dormi.
No dia seguinte fiquei completamente intrigado.
Por que não consigo mexer as pernas e os braços?
Advém daí a minha expectativa sobre o início do meu condicionamento físico.
Somos condicionados a tantas coisas nessa nossa vida que até indevidamente nos acostumamos com as mais absurdas atrocidades.
Hoje ouvi um texto belíssimo e esclarecedor sobre a crise climática, com as imagens das cheias nas ruas de São Paulo e no Metrô.
Parece que eu sou incapaz, ou despreparado para fazer alguma coisa para estancar os motivos que levam a esses desastres.
E prefiro a covardia de nem ficar vendo essas reportagens.
Ao entregar a passagem que comprei no auto atendimento da Viação Cometa o motorista nem pediu meu documento de identidade.
Alguns pedem, outros não e assim o que me resta é lhe desejar um BoaTarde esfuziante.
Digo isso porque eu nunca sei qual é a instrução dada a todos os motoristas da rede.
Para os professores as instruções são bem claras e devemos cumpri-las com seriedade e responsabilidade.
Claro que escrevi isso com propósito.
Que isso valha pra qualquer pessoa, como já preconizou nosso Lulu Santos.
Ah! A Arte!
Ela e suas intuições, suas experiências diversificadas, suas subjetividades e seus deslimites.
Penso novamente no reflexo na janela do metrô e o que vejo agora é uma linha em movimento.
A linha que divide uma placa de concreto da outra.
Acima da linha, de vez em quando, um adesivo amarelo.
O motorista aplica a instrução que lhe foi dada e fala em voz alta:
Usem o cinto de segurança e Boa viagem
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