Um calor do cão

Imagine eu, de motorista no meu carrão, voltando da consulta com o doutor Hugo e caminhando pela avenida marginal.
Ao sair do local onde estacionei meu carro preto, percebi no vidro do para-brisa algumas gotas d'água e pensei:
O doutor é tão atencioso e minucioso que enquanto estávamos na consulta choveu e nem percebemos.
É uma Pessoa das antigas, o doutor.
Um Mestre que apalpa o barrigão para ver o tamanho e o funcionamento dos órgãos internos.
Elogiou a pulsação da minha haorta.
No final ele acabou por elogiar tudo, porque estou bem e como ele fez as apalpações comigo deitado, ele não percebeu a enorme barriga de farináceos.
Explico, que deitado, por gravidade, as coisas se espalham para as laterais.
Enfim.
A maior gravidade mesmo é que o meu outro doutor só acredita que eu vá fazer exercícios na academia quando eu mostrar o certificado de matrícula.
Estou empenhado em fazer mesmo, afinal só depois de comer quatro chocotones e seis tabletes de Talento verde, é que nunca mais coloquei um doce no meu aparelho digestório.
Fiquei sem colocar açúcar no corpinho e Pronto.
A glicose no sangue em jejum caiu pra noventa e três.
Saí com o carro e só choveu na Marginal do Rio Sorocaba.
Uma chuva pra lavar o carro e só.
Até deu pra passar na farmácia do Coop, já sem chuva, pra comprar os dois medicamentos que vão curar o que o outro medicamento provocou.
Depois que você ler esse texto, se for muito curioso, ou curiosa, procura no Oráculo Google o principal efeito colateral do forxiga.
Rio à toa, também pela sutileza do nome do dito medicamento.
Eu nem precisava ter tomado isso, era só parar de comer açúcar, mas a ânsia por alguma ajuda externa é tanta que sugeri um remédio, ao invés de resistir aos chocotones úmidos daquela marca famosa e ao melhor chocolate de todos os tempos, idos e vindos do planeta e da galáxia.
O Talento verde.
Haja talento.
Resolvo pensar daqui da minha poltrona número vinte sobre o calor do cão.
Só consigo pensar na relação que me foi apresentada a tempo, que diz que o cão sua pela língua.
Passei o dia inteiro no calor de Sorocaba, que se mostra mais como um forno usado na fabricação de peças de vidro e acabei suando até pela língua.
Calma.
O suar pela língua não é literal no meu caso.
Falo não só pelos cotovelos, mas os cotovelos são movimentados pela minha origem italiana.
Na reunião eu falei, mas antes disso eu ouvi bastante e isso fui aprendendo com o tempo.
Fomos todos certeiros nas nossas interações.
Formamos um grupo muito bom, de tal forma, que no tempo exato de encerramento nós saímos com as diretrizes traçadas para as avaliações escolares que ocorrerão durante o ano.
A língua pela qual nos comunicamos é muito linda.
A língua do afeto, do respeito, da boa intenção de acertar no contato com o outro, de acolher bem, de se interessar, de achar no outro aquilo que importa.
E importar é intronizar, colocar dentro e aprender a recompartilhar os achados em conjunto.
A única frase que anotei ontem foi Que o foco do Mestre é no Aluno, no oficialmente aprendiz.
E é mesmo, afinal apesar de não estarmos prontos e acabados, somos muito mais aparelhados pelas experiências do que os queridos e queridas que têm dez, catorze, quinze, ou dezoito anos.
Quando saí da escola, ultrapassei os muros e encarei essa minha outra vida pronta pra ser vivida.
Outra escola.
Apertei o botão do controle, destravei as portas e entrei.
Já era tempo de organizar a ordem dos fazeres até a hora de estacionar o Classic na frente do consultório e pra isso zarpei.
Pegar um prato de comida no Ziva, chegar em casa, tirar a roupa da máquina e estender, ir ao banheiro, colocar o celular pra carregar, aprontar a mochila, comer rapidinho, tomar o remédio novo e descer para pegar o carro no estacionamento do meu prédio amarelo.
Aqui do alto dos meus sessenta e cinco, eu me vejo feliz e disposto a apostar sem dinheiro.
Chego sempre antes do horário.
Como já escrevi, estaciono.
Sempre sento no corredor do busão.
Olho pro vidro do Cometa, miro as gotas em movimento e chove bastante em São Paulo 

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