Vidros no muro

Apresentei a passagem para o motorista e disse:
Boa noite.
Ele já foi logo arrematando: Olha o radialista aí!
Eu completei: Você me trouxe para Sorocaba no domingo, falou sobre a minha voz, mas eu não comentei que você também tem voz de radialista.
Deu tempo de falarmos juntos:
ZYZ rádio Cometa FM.
Juro que os outros passageiros que vinham atrás nem perceberam ou reclamaram.
Rio.
Claro que depois de escrever ZYZ eu dei um google sem pestanejar.
ZY significa que é uma rádio mesmo, a outra letra muda regionalmente e vai indicar se é uma rádio AM, ou FM.
Como eu sempre termino com FM, o meu regional afirma que é Z, de FM.
ZYZ.
Zíz foi o pequeno ruído que o pequeno pássaro fez ao tocar o bico no vidro da porta da minha varanda.
Decidi que ao contar pra vocês eu ia começar deste quase fim.
Acordo bem cedo e agora que ganhei uma geladeira nova eu faço meu café da manhã.
Ao me levantar para essa primeira tarefa eu percebi que pela porta da varanda que eu deixo sempre aberta, vinha um friozinho que precisava ser estancado, afinal eu estava vestindo apenas minha camiseta de dormir com um polvo um tanto estranho desenhado por mim com caneta preta.
Fui até a varanda e ao começar a fechar a porta eu percebi voar no lado de fora do vidro o que eu julgava ser uma mariposa escura.
Como ela já havia se despedido, fechei completamente a porta.
Fui até a cozinha, pus para esquentar o leite no micro-ondas, passei margarina nos dois pedaços de pão que já estavam no pratinho transparente e depois do alarme do micro tocar eu levei as guloseimas para a mesa redonda da sala.
Foi aí que ouvi o ruído no vidro da porta da varanda.
Era um pequeno pássaro escuro, do lado de dentro da sala.
Fui um pé após o outro, abri delicadamente a porta e ele como um raio voou para fora, alinhado com a rua perpendicular em frente ao nosso prédio.
Vale a pena especular que o que havia visto mariposa era na realidade, o pequeno pássaro.
Se essa especulação lógica é a verdade, também pode ser que a mariposa vestiu o manto da invisibilidade e passou através do vidro, transformando-se num pequeno pássaro bonitinho.
Você deve imaginar que esse poder mágico revelado em filmes de ficção, dessa vez ultrapassou os limites, integrando além da invisibilidade, o poder de atravessar objetos e o de transformar uma coisa em outra coisa.
Prefiro acreditar no cuidado.
Não o cuidado que se deve ter ao inventar coisas malucas, ou estranhas, mas o cuidar.
De forma alguma o pequeno pássaro poderia ficar o dia inteiro sem comida e água dentro de casa, sem a chance de encontrar voo para o seu ninho, ou encontrar sua família.
Tantos pequenos exigem cuidados essenciais e não os têm.
Tenho recebido tanto cuidado e carinho para virar a chave para um novo ciclo e não fico apenas no desejo, mas acho bonito poder retribuir.
A primeira pequena artista que me mandou desejos de sucesso e felicidade nesse novo ciclo, disse que ainda teria um Olho meu.
Um Olho meu poderia ser o meu Olhar, ou poderia ter a ver com a minha estranha mania de desenhar repetidamente Olhos e mais Olhos.
Escolhi a opção mais prática e fiz um olho enorme com papel canson, aquarela e caneta preta.
E o olho já não é mais só meu, é Nosso, é dela e de tantos outros que o verão a partir da exposição que ela deverá aplicar à obra.
Nós podemos nos dedicar ao cuidar.
Ontem foi celebrado o dia dos professores.
Somos seres professadores e ao professarmos, cuidamos de afetar os outros e também nos afetar com tudo o que os outros nos oferecem, ensinando e aprendendo numa frequência FM.
Força e Movimento.
Podemos nos movimentar além do vidro, transformar o nosso voo em voos coletivos.
Há tempos ouvi a metáfora do indivíduo de uma asa só, que só podia voar abraçado ao seu semelhante.
Voarmos juntos é essencial.
Oferecer algo meu para que o outro possa se alegrar, ele oferecer-se também criando uma cinestesia da alegria.
Aqueles pedaços de vidro que algumas pessoas ainda colocam nos muros da casa na esperança que algum ladrão não tenha condição de invadir a sua propriedade, é desnecessária.
Ninguém vai invadir casa alguma quando voarmos na utópica ideia de darmos mais valor às coisas públicas do que às particulares.
Acabo de sair de casa e deixar a porta da varanda apta a deixar entrar um pouco mais de ar fresco transformado em sonho acordado.
Estamos de acordo

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