Imagine

Imagine uma caixa de sapato sem os sapatos.
Um conjunto tridimensional de papelão.
Adoro fazer peças com placas de papelão retiradas das caixas que encontro nos supermercados, porém essa caixa já veio pronta da fábrica e continha um par de tênis.
A tampa já vem acoplada e fixada numa das arestas da caixa.
Essa informação é importante porque facilita na hora de abrir e fechar, além de não corrermos o risco de perdermos a tampa.
Explico que usei o verbo "corremos" porque essa caixa não é só minha.
Minha é a ideia de encaparmos a tal caixa para guardarmos os materiais de desenho e pintura para as nossas aulas que acontecem durante o ano.
Uma caixa coletiva que depois da primeira camada de colagem de papéis, ela vai recebendo novos pedaços de pequenos e médios papéis durante o ano todo.
Voltemos.
Dia primeiro de janeiro eu pego pequenos pedaços dos papéis que embrulharam os presentes de Natal e encapo a caixa por dentro e por fora.
O nome oficial dessa técnica é papietagem, mas agora isso importa pouco.
Uma gama enorme de papéis que embrulharam brinquedos, roupas, sapatos, tênis, perfumes, sabonetes entre outras tantas coisas, cada uma contando uma história diferente da outra, afinal foram compradas por pessoas queridas que Desejam presentear outras queridas.
Lembrem-se que eu começo esse texto usando o verbete: Imagine.
Traga à sua mente as várias imagens e cores que foram impressas nesses papéis de embrulho.
Pense na cor dos sapatos, as estampas das roupas, as fragrâncias e aromas dos cosméticos que foram armazenados por esses papéis.
Pense no tempo que levou do exato momento do embrulho na loja, ou em casa, até o esmigalhamento da embalagem quando o dono do presente o encarou.
Pense na surpresa ou no entristecimento, na alegria ou no constrangimento.
Tudo isso agora está nos pedaços pequenos que estão colados na antiga caixa de papelão.
Os materiais são colocados dentro da caixa.
Lápis de cor, grafite, borracha, apontador, canetas hidrográficas, corretivos, marcadores de texto, tudo isso se encostando na mistura de pequenas estampas e adquirindo novos significados.
À parte de tudo isso, é necessário imaginar as pessoas, os alunos, os professores, todos achando na rua, em restaurantes, em casa, papéis para serem colados na caixa.
Além de tudo isso, desenhos são feitos em papel pequeno, especialmente para serem colados.
Imagine as pessoas no trânsito pensando no momento em que chegarão perto e vão colar um adesivo ganho na véspera.
Alguém almoçando no Almanara, pegando o guardanapo de papel com a Marca, recortando à mão o papel, colocando na carteira, só para colar na caixa no dia da aula.
Até o dia 30 de novembro ainda tem chão, mas é justamente no chão que existem muitos papéis pequenos jogados, que diante da visão de um pequeno Artista pode virar objeto de colagem na caixa de materiais.
Sim, os papéis podem ser colados até o dia 30 de novembro.
A questão filosófica dessa crônica é justamente o que você deve estar imaginando.
Se todos têm esse tempo todo, do primeiro dia de janeiro até o dia 30 de novembro, com certeza haverá pedaços colados primeiro que serão cobertos pelos papéis colados a menos tempo.
E é aí que a ideia da Caixa de materiais coletivos adquire mais sentido.
Adoro a frase: Se faz sentir faz sentido.
Como também adoro o título maravilhoso do livro do Arnaldo:
TUDOS.
O que há no plural de Tudo?
Exatamente o que há colado na caixa de papelão.
Tudo e o conceito.
Quando algo cobre o antigamente já colado, ele apenas esconde a imagem e não aquilo que a imagem antiga significa.
Ela não foi arrancada, substituída, esquecida.
Não.
A sua memória permanece ali, tanto que não são poucas as vezes que alguém pergunta:
E aquele gato que estava aqui?
O gato persiste, resiste, insiste.
A preocupação de alguém com aquilo que pode ser colado sobre outra coisa, é uma pré ocupação, afinal todos devem se ocupar de colocar uma colaboração própria na caixa coletiva.
A caixa desse ano é a décima primeira.
Onze anos desse processo.
Por conta da minha aposentadoria da Escola Pública, fiquei com as letras iniciais de todos os meus alunos desse ano.
Todas as Letras já estão coladas na Caixa de dois mil e vinte e cinco.
Está sendo necessária essa colagem para que no ano que vem esses queridos fiquem impressos na memória recente.
Não apenas na minha, mas nas de todos que puserem os olhos e as mãos nesse material.
Interessante como o Material carrega o Imaterial.
Interessante como o palpável busca e espera pela Poesia.
Não se preocupe.
Nossa emoção é feita da papietagem de vários sentimentos sobrepostos.
Sempre buscados e esperados.
Jamais esquecidos

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