Sopro

Na fotografia a moça está sorrindo como sempre.
Alegre, expedita, parece sorrir mais ainda.
Eu imagino a vida, tendo visto a orquídea sutil e bela que a menina me mostrou no vaso.
Uma delas havia caído nesse outono.
Peguei-a na mão, imaginando colocá-la numa moldura de papelão de caixa, papietada.
Logo depois de imaginar essa cena, coloquei a flor caída num dos caules vivos, como se ainda pudesse sustentar-lhe a vida, esquecendo a moldura.
Há onze anos eu papieto uma caixa de sapato por ano e na caixa coloco os materiais artísticos para que sejam compartilhados com alunos e professores.
Pensei nessa imagem por conta da colagem de papéis, os mais diversos, que vão sendo colados -  dia a dia - por quem se interessar em fazê-lo.
Tenho interesse na ideia de um papel colado levemente sobre o outro, ou mesmo muitos sendo colados uns sobre os outros.
Encanta-me a ideia que mesmo que a gente não veja o papel que está embaixo, ele ainda resiste e insiste na nossa memória criativa.
Ele Existe ali, mesmo que agora embassado.
Pense que são etiquetas, notas de supermercado, senhas de banco, ou hospitais, forminhas de brigadeiros, palitos para mexer o café, aruelas achadas no chão, lantejoulas brilhantes, contas de pulseira com letrinhas, selos e muitos outros materiais delicados.
A moça tinha essa característica, delicada e espalhafatosa, numa oftalmologia que maximizava a alegria.
Talvez parecesse uma orquídea presa no caule de uma árvore de calçada, localizada fora da minha passagem e eu só a visse de tempos em tempos, quando os meus olhos teimassem em enxergar mais turvo.
De tempos em tempos passava em frente e avistava a calçada e a flor, suspensa no xaxim colado à casca.
Lá está ela, como um papel celofane rosa e transparente sobreposto por um papel de saquinho da confeitaria Umberto.
Ela e o celofane resistem ali, o papel de saquinho do confeiteiro até adoça a sua existência.
Quando a caixa de materiais está paradinha no sofá da sala, ela descansa suave, colada ao encanto da lembrança.
Quando a caixa sair para passear, ela dançará como forminha de brigadeiro um pouco encoberta pela senha da farmácia.
De todos esses jeitos, ela se engraça e se sobressai.
Ela deseja que todos nós saremos da dor de quem fica.
Deseja que observemos o orvalho regando a orquídea da calçada, esperando mais uma florescência vigorosa.
Sento na cadeira branca, coloco o meu queixo na máquina depois de arregalar as pupilas, sou observado bem no fundo dos meus olhos e nós dois temos uma certeza.
Não havia cataratas até hoje

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rima

A saga das palavras

Escolhas