Caminhando

Depois de descer com a escada rolante fiquei observando as pontas dos meus tênis, caminhando.
Pisando leve conforme a sola ergonômica dos pisantes me permite.
A primeira descoberta é que o piso da área térrea da rodoviária é feito de quadrados de borracha que imitam granito.
Acho moderna essa coisa de imitar, copiar, dar a aparência de alguma coisa, sem sê-la.
Todas aquelas gotinhas cinzas claras, salpicando o restante do quadrado cinza chumbo.
Uma imitação, porém a sensação é do granito, na minha memória larga e abrangente.
Além dessa característica do piso, eu descubro as linhas verticais e horizontais feitas pelos encaixes dos quadrados de borracha.
Nada a ver com o concretismo de Mondrian, que teimava em simplificar de forma complexa as suas composições usando as cores primárias.
Porém, as linhas pretas na horizontal e na vertical suscitaram em mim a composição concreta.
De concreto mesmo só a memória, a associação, as relações e os sincretismos.
Eu não tiro meus olhos das pontas dos meus pés e agora me deparo com as tiras pontilhadas em relevo, que orientam os deficientes visuais e me orientam também.
São feitas de placas quadradas de borracha, mas essas são amarelas e azuis, com pequenos cilindros em relevo.
Anteriormente encontrei outras dessas amarelas, postas paralelamente ao buracos dos trilhos do metrô, para que nós não ultrapassemos, já que corremos o risco de cairmos no fosso.
Eu e meus pés observamos que para várias pessoas, a faixa amarela não significa mais nada e elas teimam em ficar grudadas na beirada.
Com certeza, já tendo essa experiência, alguém do metrô teve a ideia de colocar portas nos terminais.
Meus pés continuam ativos pisando no chão de borracha. Antes que eu cheguasse perto de algum banco de plástico, pisei num recibo da casa do pão de queijo.
Vejo que o dono do papel comeu um pão e bebeu um café pequeno.
O suficiente para que eu levasse a minha memória para uma fala do doutor Jorge:
Você pode comer de tudo, mas pouco.
Embora pareça uma promessa de início da semana, eu pretendo seguir essa dieta à risca.
Tropeço numa placa mais saliente e me sustento com os dois pés perto da lixeira emcapada com plástico preto.
Meus olhos vêm dentro dela uma embalagem vazia de chambinho.
E não é que dizem que ele vale por um bifinho?
Imitação, nada mais do que pura imitação.
Daquelas que forram as programações das TVs abertas, fechadas, as redes sociais e as estações do metrô.
Forram a nossa sensação, as nossas metáforas, os nossos medos.
Faz-nos parecer e até faz-nos perecer.
Somos nós os Modernistas, os Contemporâneos, que nos arriscamos a nadar contra metade dessa corrente, atados por um pé à essa corrente devastadora.
Eu sou um modernista da esperança tola.
Estou sentado numa poltrona mais macia que a cadeira de plástico da rodoviária e meus pés estão agora assentados noutro piso sintético.
Tento sintetizar isso tudo com o que me é poético e vivo.
O modernista da esperança tenta dormir um pouco, mas a sua mente permite apenas que ele continue observando a ponta dos seus pés calçados


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