Lembrancinhas

Adoro e sempre adorei a palavra Souvenir

Sou de alma, venir de venha.
Que venha da alma a lembrança.
Na sexta da paixão saí correndo do apartamento.
Da portona do mercadinho avistei o último ovo revestido com papel azul brilhante.
O último era pequeno, do jeito que eu queria.
Levei.
No dia seguinte fui comprar tomates e percebi realmente que aquele de ontem era o último.
Adoro falar: O Último dos Moicanos! nessas ocasiões de encontro com uma última coisa do lugar, ou do pacote.
Depois de uma certa idade a gente já sabe a dor dos moicanos, mortos e expulsos por nós, os brancos, do território do Norte.
Aqui no sul, nós mesmos nos encarregamos do extermínio.
Depois de uma certa idade a gente vai tentando remediar a todo custo, tudo isso.
Na sexta comprei o último.
O último ovo dessa ninhada, afinal depois de amanhã já estarão expostos os ovos do ano que vem.
Na rodoviária de São Paulo e na cauda do Cometa, as lembranças e vivências são sempre controversas.
No guichê são dez horas e cinquenta e cinco minutos e o moço não me deixa comprar a passagem para o ônibus das onze.
Ah não, o senhor não vai conseguir chegar a tempo.
Eu sei que o ônibus sempre atrasa, mas tudo bem.
Quando eu estiver lá embaixo verei sair atrasado o das Dez e quarenta e cinco e depois chegar o das Onze e meia, ou seja, verei eles cancelarem o ônibus das onze.
Rs
Compro passagem para o das onze e meia.
Visto que eu tinha tempo, fui até a muvuca da loja que é um show de cacau.
Quando estava indo em direção ao guichê, minutos antes, já tinha visto uma festa de papéis laminados de múltiplas cores, dançando para dentro da vitrine.
Desta vez o ovo pequeno não era o último na loja.
Havia vários embalados pelas caixas lindas, mais caras do que o próprio chocolate.
Eu queria apenas uma lembrancinha, um souvenir.
Pús os olhos numa cesta bonita.
Lotada de ovos que não podíamos ver a embalagem.
Um ao lado do outro, encaixados, irmanados como Moicanos na tentativa do Coletivo enfrentar o poder dos colonizadores.
Eram todos num só, porém havia um a saltar como se falasse:
Olha eu aqui!
Estiquei meu braço e com a mão limpa pelo sabão líquido de aroma alfazema, puxei o ovinho falante.
Ouço as vozes dos objetos e eles me instigam a absorver suas lembranças, lembrancinhas, souvenires.
É assim que desenho, que pinto, que moldo e que escrevo.
A minha criança vai lutando para não ser tragada pelo consumo.
Parece uma luta fadada ao fracasso, mas apenas parece, não perece.
Eu sempre adorei a palavra souvenir mesmo antes de saber o seu significado.
Venha minha alma.
Venha e seja.
À minha esquerda, já em viagem, vejo o grande painel do Kobra, mostrando um menino em seu barco de madeira com muitas frutas do cacaueiro.
Ele rema, rema, rema.
Rema com força para entregar as frutas ao patrão.
Ele é um menino.
Apenas um menino.
Ele trabalha.
Não tem tempo nem de ver a portona do supermercado

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