Fusca bege
Um fusca atravessou a via a toda velocidade e eu pude ver quase toda a sua trajetória.
Não deu pra ver a frente, porque foi a partir da lateral que pude ver o real estado do conjunto de peças metálicasUm mosaico de peças de lata, pintadas cada uma de uma cor diferente.
Porém o que me encantou foi pensar que o motorista e possível dono do automóvel, o tinha como meio de transporte e não como um bem durável e confortável.
É confortável para mim, poder pensar assim?
É cômodo, mas pra ele é um cômodo a mais e isso não o incomoda tanto.
Tudo isso parece fora de moda, mas não está.
A moda num país com tanta desigualdade social deveria ser a busca pela simplicidade.
Não é porque a oferta vinda das redes é avassaladora e voraz.
Na moda o veículo estaria com rodões de tungstênio, faróis de milha, pneus faixa branca e tudo aquilo que pouco me interessa, afinal até pouco tempo eu tinha o meu Fiesta 98 sem pintura.
O que me era cômodo também.
Era mitológico.
Minha cabeça imaginou pra onde o condutor se encaminhava com tanta felicidade e rapidez.
A felicidade a que me refiro é aquela que aparecia na presença de um sorriso no seu rosto, quando se posicionou frente ao retrovisor.
Retrovisor do fusca ali parado, a espera como eu, do sinal verde para virar à esquerda.
Vila Garcia.
É capaz até que o Zorro tenha estocado a sua espada naquela lataria e escrito seu Zê para deixar de lembrança.
Sinal que deixou à mostra aquela risca de ferrugem a denotar o tempo, no qual o ator que fazia o papel do comandante da nave dos Perdidos no espaço, também fazia o Zorro na televisão.
Interessante foi como eu descobri isso, sendo que nos anos sessenta nem o Google existia.
Existia álbuns de figurinhas às pencas.
Num desses excelentes exemplares havia as páginas referentes aos atores dos seriados da T.V.
Uma em especial encantou o Nivaldo, meu colega da Escola Municipal Getúlio Vargas.
Foi ele que num intervalo onde comíamos pão com carne moída e molho de tomate, abriu na página do Perdidos no espaço e com a caneta pintou os bigodes no Guy Williams.
Pronto, era o Zorro!
Do Nivaldo eu imitava a letra que ele desenhava com maestria empunhando a sua caneta tinteiro, já com aquele tamborzinho de plástico engatado, que trazia a tinta azul.
Eram letras inclinadas, grandes, feitas com traços grossos e finos, na medida do peso que colocávamos na pena.
Depois imitei a letra, tipo datilografada do Zé Cláudio e a inclinadíssima do Otoniel.
Um craque jogando futebol na quadra de cimento, usando seu conga branco, simples, mas muito chique.
O meu e os de quase todo mundo eram azuis.
Zé Cláudio me ensinou tudo a respeito de bandas de garagem e depois que fomos visitar uma delas que tocava perto da sua casa, fomos ouvir pela primeira vez o The dark site of The moon do Pink Floyd e o Close to the edge do Yes.
O toca discos era uma Eletrola Philips mono.
Nada de estéreo.
O único auto falante era parafusado na tampa que se unia ao gira discos através de um fiozinho preto.
Zé nos deixou há um ano depois de dois meses de um sofrimento sobre o qual não gosto de imaginar.
Gosto de imaginar o motorista do fusca e sua viagem feliz.
Hoje ele deve estar descansando em casa, com o carro guardado na garagem e assistindo um jornal qualquer na T.V.
Embaixo do assoalho do fusca velho, dorme um gato igualmente velho, mas aquecido pelo motor que foi usado quase o dia todo.
Todo dia é dia santo e a santidade do dia é coroada com as lembranças de cada sinal verde, ou vermelho enfrentado.
Em cima do meu toca discos está a toalha de renda vermelha que a dona Anna ganhou de presente e não teve tempo de dar para alguma amiga, ou alguém que acabara de conhecer.
Consigo ouvir sem pen drive, sem agulha ou qualquer outro artefato tecnológico, o solo da Time do Gilmour, já que esse parece tanto e com a mesma beleza, do ronco do motor do Fusca, se esvaindo, longe, afinal faz mais de trinta segundos que virei à direita, procurando outra coisa que me fizesse lembrar de algo que ainda não conheço, mas desejo na sutileza dos seis detalhes, conhecer
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