Criança

Achei a criança que estava aqui.

Dei um salto de costas para chegar até o colchão forrado com lençóis estampados com listras verdes e quadradinhos de várias cores.
Levantei primeiro a perna esquerda, coloquei o pé da meia e depois fiz a mesma coisa com o pé da perna direita.
Logo ao lado da cama, sobre um banquinho de madeira, está uma tábua que era a lateral de um móvel velho.
Sobre essa espécie de escultura contemporânea estão as coisinhas da criança.
Uma tampa de lata de paloma pascal aconchega miniaturas da patrulha canina, um porta copos com o distintivo do time do coração, uma pedrinha preta, uma mola, um clipe e mais trezentas e nove bugigangas feitas com vários materiais.
Sobre a tampa de acrílico do aparelho de som estão CDs e livros dos anos setenta.
Viro a cabeça, encarando a tampa da paloma e pego o nariz de Palhaço vermelho para colocar e fazer uma self.
Essa figurinha em dez segundos  já fará parte da coleção do meu perfil das redes sociais.
Levanto-me com as meias vestidas e caminho pelo corredor do apartamento.
Dia doze de outubro é dia santo.
A minha brincadeira favorita é desenhar e fazer peças dobráveis sobre a toalha presenteada pela dona Cacilda.
Toalha que a Maria colocou com toda delicadeza do mundo para decorar a mesa redonda.
Para quem olha a mesa por baixo percebe a papietagem feita com páginas de jornal para que as farpas do aglomerado não pinique a toalha delicada.
A brincadeira corre solta e os papéis que usei para fazer o miniLivro estão agora guardados no saco plástico de onde vieram as balinhas de goma e os confeitos de chocolate.
Corre-cotia, pega-pega, passa-anel e esconde-esconde agora são memórias de jogos eternos.
Encontro seus significados numa olhadela no Google.
Corro pra Cotia e compro um vinho sangue de boi em São Roque, lembro num relance do Supermercado Peg-Pag, passo o anel de papel pelo papel celofane para deixá-lo mais brilhoso e escondo o meu rosto do reflexo do vidro porque a noite é uma criança.
Já disse a Rita que a tal noite é distraída.
Distraio-me com a música que a Alexa toca sem eu nem ter tido a intenção de pedir, embora eu adore o Carequinha e o seu Bom menino.
Já é hora de dormir de novo e lembro que a minha mãe já não mora mais aqui.
A hora seleta do café faz com que eu preveja um sono bom, porém já não adianta bater porque o frio está entrando sem pedir licença.
Como criança eu esperei o dia inteiro pelo meu presente que pensei não ter vindo e como uma criança grande já aprendi que não posso colocar o dedo na tomada.
Tomei uma decisão.
A decisão está tomada.
Minha criança pede que eu decida por acreditar sempre que o abraço e o cuidado são coisas que não têm idade.
Enquanto não durmo eu visto minha calça jeans, minha camiseta e meu Bamba bege.
Na camiseta está estampado o parangolé da Tropicália.
Agora são os anos sessenta e quatro.
Bora lá.
Cresci, mas essa ideia é uma ideia  vaga.
Uma vaga ideia.
Eu nem penso em estacionar, mas procuro a vaga do idoso, só pra garantir.

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