Alcachofras

A questão da hora marcada é uma questão de ideologia.

Insetos com aparência minúscula se escondem nas profundezas das pétalas de alcachofras.
Aparece para todos os que lidam nessa cozinha a discussão sobre se os insetos são lagartas.
Não é uma coisa futura, mas presente.
É lagarta, ou inseto?
Vejo que eles estão formadíssimos.
Seis patinhas e tudo.
E agora?
Estão vivos, ou mortos?
A moça nem esperou e já respondeu com jatos de água e imersão das flores em água estéril.
Não sobrou nem larva, nem inseto, nem patas, nem perninhas.
Todos jazem no sifão, ou nos encanamentos mais abaixo.
E os fatos vão se desenrolando um a um no compasso das ansiedades e tranquilidades de cada chef cidadão.
As mãos amassam as migalhas de pão com azeite e salsinha.
A menina que tascou o pé num tronco que estava no meio da calçada acabou de chegar vinda do hospital, vestindo uma pulseirinha cor de laranja.
Duas laranjas acabam de ser espremidas para o suco da querida senhora, que espera o almoço na cama e assiste o vôlei brasileiro mais perto das olimpíadas.
A menina - mancandinho - vai transportando travessas de cerâmica branca que guardará o risoto.
Já as panelas enormes suportam as alcachofras e a água salgada como a água do mar borbulhante.
Isso é o que diz a receita de família, passada de boca em boca desde a vó Augusta. pe
Passou da boca da senhora dos números que espera na cama e chegou na experiência da filha rápida, esperta e certeira.
Ao gosto de quem gosta de emoções fortes e trabalhos manufaturados, tudo está alinhado com o relógio de sol.
Relógio que me remete àquele que foi removido da praça porque quase todos maginavam que aquilo era apenas um mastro torto, sem razão ou serventia.
As alcachofras nem pensam em nada disso, apenas suam nas panelas grandes a espera de bocas e dentes vorazes.
Quando eu era pequeno eu nem sonhava que as pétalas das alcachofras pudessem ser recheadas.
O gostoso era o modo como arrumávamos os pratos fundos.
Colocávamos um garfo sobre a mesa na posição horizontal e colocávamos o prato inclinado, apoiado no garfo para que o azeite, o sal e o vinagre pudessem se depositar na parte mais baixa.
A partir desse ritual íamos despetalando a alcachofra e raspando a parte gordinha nos dentes de baixo.
Hum, que delícia.
Outra surpresa estarrecedora ao meu ver é que hoje a gente se delicia com o miolo da flor.
Na era passada eu dizia que detestava, assim como detestava o quiabo, essa maravilhosa iguaria que me surpreendeu por ter gosto e espetacular, tanto em salada como cozido.
O espetáculo se apressa em começar.
Os dois portais desse apartamento anseiam pela entrada de todos aqueles que combinaram o encontro na quinta passada, rodeando a mesa num outro almoço emocionante.
A hora marcada nesse caso pouco importa.
Seja no relógio de sol, de parede, no digital ou no analógico, o que está em jogo é o abraço alongado da chegada.
O miolo está na panela quase se desprendendo dos pelinhos acinzentados.
Tudo está no ponto.
No ponto de encontro.
A mesa posta aposta nos corações da Flor

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