Fácil

Eu ia começar esse texto escrevendo sobre outro acontecimento, mas resolvi começar pela única gota de chuva que caiu na minha cabeça antes que eu pudesse atravessar a rua.
Claro que na travessia até a academia algumas outras gotas me atingiram.
Agora chove aquela garoa fina de São Paulo.
Resolvi que iria começar o texto assim por causa da sensação.
Ontem o que resta do meu cabelo, raspamos com a máquina zero.
Uma única gota atingindo o couro cabeludo é muito mais significativo do que uma chuva intensa e torrencial.
Escrevo dessa forma para ver se você é capaz de sentir, na semelhança do meu sentido.
Recomeço a colagem de palavras com a brutalidade característica do dono da loja que faz cópias.
Todas as vezes que vou usar o serviço é um novo atendente que me cumprimenta.
Cada dia é uma pessoa diferente porque nenhuma delas consegue ficar naquele lugar com um chefe tão nocivo.
Esse novo moço foi mais um gentilíssimo, porém quando começou a fazer as cópias, teve a infeliz ideia de fazer uma pergunta ao chefe.
A partir daí foi uma patada atrás da outra.
Insano.
Saí de lá agradecendo o auxílio do moço e colocando os documentos no envelope.
Eu ando bem rápido e caminhava na direção dos correios, quando ouço alguém correndo logo atrás de mim.
Era o moço esbaforido, me devolvendo a carteira de identidade da dona K.
Ela havia ficado na máquina.
Para que ele descansasse da corrida fiquei um tempinho conversando trivialidades com ele.
Foi também para que ele tivesse mais um tempinho fora daquela loja de horrores.
Como não é de hoje que observo e penso a respeito do chefe, imagino que ele deve ter passado por traumas horríveis até chegar aqui e ainda não conseguiu superá-los.
A vida nos provoca dessa maneira e quanto menos tempo demorarmos para trazer dos traumas algum aprendizado, nossa sequência será mais produtiva e muito provavelmente reagiremos com os outros de maneira mais assertiva.
Porque não há como ter vida sem algum trauma e talvez essa seja uma das únicas coisas que não tem a ver com dinheiro.
Tendo mais ou menos dinheiro as coisas que nos deixam desconfortáveis, sempre aparecem dando de cara com a gente.
Mais uma vez sou levado a realçar o fato que sou muito abençoado.
Meus traumas são bem menores do que o de muitos que andam por vales de muitas lágrimas e com toda certeza têm muita dificuldade em aceitar e avançar, buscando soluções para aquilo que parece insolúvel.
Agora a garoa se transformou em tempestade, já que posso ouvir o barulho muito alto das gotas no teto de alumínio.
Consertaram a calha que dá para o terreno vizinho, porque não vejo mais as goteiras que pingavam sobre o aparelho de Lat Pulldown.
Saí da bicicleta para ver de perto se nada pingava mesmo e para escrever direito o nome do aparelho.
Rio porque rir é o melhor remédio.
Não precisei fazer nenhum esforço, a não ser o dos dois dedões para saber que lat pulldown significa última puxada para baixo.
Rio porque não valho nada mesmo.
O instrutor me ensinou que os números dos pesos das máquinas da esquerda são medições em libras e os da direita são medições em quilos.
Vivendo e aprendendo.
Esse aprendizado se deu por conta da pergunta que fiz a ele, logo após ele me dizer que o peso estava muito leve na máquina de abdominais.
Pela primeira vez em três meses vi que estava leve mesmo.
Rio porque os caras querem matar a gente com exercícios pesados.
E aqui vou levando a vida com esse sentido irônico que é o sentido da Arte que faz Verdade de tudo que até parece mentira.
Isso é do Picasso, lembrando que ele era muito agressivo com suas mulheres.
Lembrando que as mulheres eram delas mesmas, mas naquela época tinham pouca voz e como a querida Camille Claudel, que sofreu bastante nas mãos do Rodin, foi silenciada pelo enorme potencial que possuía.
Os artistas devem ser respeitados pelas suas obras artísticas, afinal o ego imperfeito muitas vezes os atira no limbo da vida privada.
Ao sair da academia tenho certeza que o meu ego, centrado na minha cabeça, chorará lágrimas de inverno


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